Saiu
no suplemento Ípsilon, do jornal Público de 30 de Novembro passado, um texto
que não pode deixar de suscitar uma reacção. Com o título http://issuu.com/andradesamuel/docs/ipsilon_121130">"A
evolução da alternativa ao academismo contada às criancinhas"
,
esse artigo de opinião versa, em tom de escárnio, sobre a situação presente da
revista francesa Cahiers du Cinéma, contraposta aos anos históricos da sua
afirmação no mundo. O seu redactor, o crítico de cinema Jorge Mourinha,
"conta às criancinhas" a história da revista e o seu impacto nos
modos de ver, dar a ver e fazer Cinema. Diz, a certa altura, que a política de
autores tem vindo a "impor globalmente" uma "oposição comummente
aceite entre 'cinema comercial' e 'cinema de arte' ou 'cinema de autor'".
Percebemos que Mourinha sabe que os Cahiers procuraram precisamente “confundir”
essas etiquetas redutoras entre o que é comercial e o que é arte; que viram
arte no comercial (caso de Hitchcock) e comercial na arte (caso dos autores
"burgueses" da Tradição da Qualidade, que Truffaut denunciou como a
tendência mais funesta do cinema francês). Contudo, não entendemos onde está a
lógica em afirmar que o que corresponderia hoje a defender, como o fizeram na
altura os críticos dos Cahiers, realizadores como Hawks e Hitchcock, seria
"erguer a 'autor'" um cineasta como Christopher Nolan, "coisa
que aos Cahiers hoje, entrincheirados no academismo que eles próprios criaram,
nunca passaria pela cabeça."
De
repente, Mourinha sonega toda a história que se segue à formulação da
"política de autores": nada mais que a emancipação do Cinema a nível
mundial. O que Mourinha propõe é olharmos para o cinema comercial como os
críticos dos Cahiers souberam olhar no seu tempo, mas como se a dimensão
autoral fosse indissociável da natureza comercial ou não do filme em análise.
Os Cahiers não estabeleceram que TODO o cinema de autor tem de ser cinema
comercial; disseram que o cinema de autor pode nascer de uma conjuntura
económica e política adversa à liberdade artística do criador. Entre o
"pode" e o "tem" cabe o mundo — claro que para Mourinha,
como a última produção de Nolan é cinema de autor, coisa que este arruma só
pelo facto de "dizer que assim é", então Nolan é o novo Hawks ou o
novo Hitchcock e... Mourinha o novo Truffaut?
O que
os críticos dos Cahiers fizeram foi — e voltamos a usar o termo
"vitimizante" de Jorge Mourinha — "impor" a liberdade de se
ver cinema muito para lá dos sistemas de gosto instalados — esses sim, foram as
vítimas da sua crítica. Os Cahiers propuseram um "novo olhar" livre
de preconceitos tal como não foi de modo algum imposto um novo preconceito que dita
que todo o cinema comercial americano está destituído de dimensão autoral, ou
então Spielberg não teria visto o seu "War of the Worlds" ser
considerado pela revista "só" o oitavo melhor filme da primeira
década do novo milénio... Ou M. Night Shyamalan não teria merecido a
consagração que nunca teve — e algum dia terá? — no seu próprio país.
Mais à
frente, o crítico do Público diz: "Muitos dos nomes que os Cahiers
defendem na sua lista como cineastas livres fazem parte do academismo do cânone
'autorista', ao qual pertencem em alguns casos mais pela sua postura perante o
cinema do que pelos filmes em si." Como pode a "postura sobre o
cinema" não estar nos "filmes em si", ou melhor, onde foram os
críticos dos Cahiers buscar essa postura que não nos filmes? Parece-nos
evidente que Mourinha, por não tolerar, por exemplo, o cinema de Ferrara,
sente-se no direito de tomar toda a linha editorial dos Cahiers por ortodoxa ou
académica ou, no limite, "conformada" — um de nós também detestou o
último Coppola, o outro não considera “Holy Motors” como merecedor de inclusão
em Tops dos melhores do ano, mas vê-los na lista da Cahiers lembra-nos como é
sempre possível um olhar diferente sobre o mesmo objecto...
Mourinha
cita Bazin para dizer que "tudo é relativo", algo que o crítico do
Público não põe em prática quando se mostra incapaz de: aceitar a diversidade
de proveniências do Cinema, reconhecer o lugar que os Cahiers ocuparam e ainda
procuram ocupar no desafio aos unanimismos e aos "gostos
maioritários" e — detenhamo-nos, por fim, neste ponto — respeitar a
diversidade de visões sobre um filme provenientes de fontes como os, segundo
Mourinha, “blogues que multiplicam opiniões”.
Recordamos que a presente indignação ao artigo publicado pelo suplemento
Ípsilon nasce na própria comunidade blogger cinéfila portuguesa, uma comunidade
liberta de linhas editoriais que não a instituída pelo próprio blogger em prol
de uma reflexão cinematográfica anti-consensual, inclusive geradora de alguns
futuros profissionais do cinema português e que, em toda a sua natureza,
pluralidade, virtudes e defeitos, revela-se um dos espaços mais férteis e
inconformados no que toca ao debate sobre o passado, presente e futuro da
Sétima Arte.
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